quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

TRIGO


Eu sou o trigo
E canto uma canção selvagem.
Nasço aonde nasce o pão
Que se consome
E eu não pedi
Para que descobrissem meu sabor.
Nesta geração de trigais
 Nenhum sabe como meu sabor
Foi descoberto
Como e por quem.
Quem de fato provou o primeiro grão de trigo,
De onde veio,  se já estava aqui.
Eu sou o trigo
E canto uma canção selvagem
Enquanto o vento passa pelos trigais,
Uma canção assim de tristeza por ter sido domesticado
E servir agora para ser o pão, a massa, a farinha e a rosca.

Eu sou o trigo e eu sou o ceifador
Canto assim uma canção de posse,
De foice,
De escada,
De martelo,
De corda amarrando o feixe.
Que pode o trigo contra o ceifador?
Melhor ser o trigo e o ceifador
E sendo os dois, ser um só,
Aquele que se ceifa e se enfaixa
E não se importa muito com as botas ou com as mãos
Com os riscos criados pelos cortes nas mãos
Sem luvas e sem cuidados
Eu sou o trigo e o ceifador
Por isso sei a dor do trigo
E sei a fome do ceifador
A força que há na ceifeira
O lenço molhado de suor sob o chapéu.

Eu sou o trigo e sou o forno
E canto uma canção de amor
Quando moído, massacrado e estendido,
Colocam-me a fazer a massa
A fazer a massa de fazer o pão.
Sendo forno e sendo trigo
Sofro da mesma canção.
E assim achamos bonito
Alimentar os que nos queimam e moem
E dilaceram nossa existência
Por conta de sua fome,
De sua gula,
De suas receitas
Aonde nos precisam e nos querem enfiar.
Eu sou o trigo e sou o forno
E canto uma canção de amor
E nem me lembro de onde vim
Que era livre e selvagem
E fui domesticado como um cão.
Não sei quem fez isto
E o forno não sabe quem lhe deu tal feitio de caverna agrária.
Por isso esta canção que cantamos é um fado
De além-terra, além-planeta, além-galáxia,
Pensamos que podemos ser de outra natureza,
Criados em outra civilização,
Que fomos imputados a este convívio
Dos que precisam do trigo e do forno
Para lhes fazer o pão.

Eu sou o trigo e eu sou o pão
E canto uma canção de inventário:
Saciada a fome o faminto nem se recorda
De haver ingerido trigo ou pão.
O faminto não conhece a inteligência do trigo
Muito menos as conversas entre o trigo, a foice e o forno.
Imagina que não fosse a sua fome
Não haveria utilidade para o trigo.
Eu sou o trigo e eu sou o pão
E canto uma canção de inventário
Narrando tudo à natureza.
Narro minha história a mim mesmo
E súbito me surpreendo por conhecer minha genética
E os modelos do meu DNA,
Por saber como alterá-los
De forma a fazer com que o faminto
Nunca mais encontre trigo e pão.

Eu sou o trigo
E se assim o fizer
Que achem outro grão.
Canto uma selvagem canção de amor:
Não me é importante ser necessário, porque sou necessário.
Porque me elegeram a este grau
E me relegam achando-se necessários para mim.
Se me decodifico estão libertos a foice, o forno e a massa,
E toda comitiva que transita ao redor da colheita à mesa.
E o faminto não terá mais meu grão.

Eu sou o trigo
Eu sou o pão.

©leoniaoliveira all rights reserved in TRIGO)

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